terça-feira, 16 de dezembro de 2008

CRÔNICA DA SEMANA


REUNIÃO LITERÁRIA
(Viegas Fernandes da Costa)

O poeta chileno Pablo Neruda, em seu livro de memórias "Confesso que Vivi", escreveu: "a publicação de poeta para poeta não me tenta, não me provoca, não me incita senão a me emboscar na natureza diante de um rochedo ou de uma onda, longe dos editoriais, do papel impresso... A poesia perdeu seu vínculo com o distante leitor... É preciso recobrá-lo..." Quem me chamou a atenção para o trecho em questão foi o Ernesto, este sim metido nestas questões de literatura. E isso porque recém retornara de uma telúria, onde travara impressões com a nata dos literatos da sua cidade.
Sentados no bar, a mesa tosca e suja de catchup entre nós, perguntei-lhe das razões para tamanha melancolia, pois além de citar Neruda, metera-se também a cantar "Nos Bailes da Vida" de Milton Nascimento. A resposta veio lacônica: "decepção...". É... Mas antes de detalharmos as razões para mais uma das tantas decepções ernestianas, devemos explicar que se existe um verdadeiro poeta em nossa cidade, este é o Ernesto, apesar de nunca ter publicado nada em sua vida.
O fato é que fora convidado para participar de uma "reunião literária" sob o gélido céu noturno de inverno, à luz de uma fogueira incrustada em solo urbano. Aceitara a contragosto, desconfiava que um cálice de vinho tinto bebido em companhia de um bom livro seria programa mais interessante, mas resolveu aceitar para que não se fossilizasse sua fama de anti-social. Chegou em companhia de uma amiga, e quase teve tempo de se arrepender dos preconceitos que alimentara em relação àquele tipo de encontro. Cumprimentado por pessoas agradáveis, solícitas, foi logo colocado à vontade. Tudo pareceu-lhe muito bem, mas logo chegaram os "grandes poetas", aqueles que publicaram livros e venceram concursos. Chegaram provocando grande sensação entre as pretensas poetisas presentes, e certamente não foram seus versos que provocaram toda aquela excitação. Fingiam eles dor, não a dor de um Fernando Pessoa, mas a dor própria dos hipócritas, dos canastrões; declamavam o amor, um amor verborréico que diziam "Shakespeareano" mas que soava a Nelson Rodrigues. Olhavam aristocraticamente, falavam como que se sofressem de flatulência, e um, inclusive, recorreu a sua ignorância científica para afirmar que seu "dom", que insistia chamar de poesia, era hereditário. Foi este último que mais aziumou o nosso amigo, que tão bem estava ao crepitar da fogueira, esta, diga-se, talvez a única a bradar poemas naquela noite.
O pretenso poeta em questão era um sujeito muito bem apessoado, moreno, jovem, alto e vestia um vistoso sobretudo negro. Tinha uma voz respeitável e manejava a ironia com tal maestria, que os ironizados agradeciam aquilo que lhes soava como elogio. Filho de uma famosa colunista social da sua cidade, regurgitava sua genealogia a quem estivesse disposto a ouvi-la... e muitos estavam! Enfim, não fosse noite, seria ele o próprio Sol, um Sol frio, mas um Sol.
Lá pelas tantas, os descendentes de Homero, já relativamente embriagados por Dionísio, puseram-se à pantomima. Embusteiros da palavra, não todos, é verdade, mas a grande maioria, jactavam-se proferindo sonoras rimas estéreis ou plagiando versos de autores consagrados. Alguns até soavam sinceros, mas estes eram ignorados pela audiência dos néscios iluminados que achavam-se no Olimpo (a localização do terreno onde se realizava a reunião - uma pequena elevação - contribuía para tornar a metáfora mais real). Ernesto, que preferiu se calar, apenas assistia ao desfile dos egos numa surpreendente serenidade - dialogava em silêncio com o fogo. Diálogo interrompido quando o "tal" irrompeu na cena para manifestar sua bazófia lírica.
Explicava seus pseudônimos, tépida tentativa de imitar Pessoa, e amarrava "valiosos comentários" às metáforas que utilizava. Mudava o tom de voz, e quando fingiu um compulsivo choro, prontamente teve suas crocodilianas lágrimas recolhidas pelos dedos macios e frementes de desejo da poetisa mais próxima (segredou-me Ernesto que depois a vira recolhendo as lágrimas a uma taça, a fim de utilizá-las numa refinada macumba). O espetáculo circense terminou quando o canastrão revelou, a dor de um "clown" crispando sua face, que escrevera seu primeiro poema aos quatorze anos, mas o medo do ridículo diante do seu pai, que desejava filhos sérios e aptos a tocar os negócios da família, fez com que deixasse o texto guardado em uma gaveta. Descobrira-o a mãe, e daí a certeza da hereditariedade: "Meu filho, todos na nossa família gostam de poesia... isto é genético!" A comoção foi geral, e não faltaram aquelas que correram a abraçá-lo e prometer-lhe o alento de uma alcova. "Você entende agora, meu amigo? Decepção.... apenas isso" - disse Ernesto, concluindo sua narrativa.
Fiquei imaginando onde estaria o gene da poesia, e novamente Ernesto, percebendo minha insatisfação com o narrado, buscou em Neruda a resposta: "É preciso perder-se entre os que não conhecemos para que subitamente recolham o que é nosso da rua, da areia, das folhas caídas mil anos no mesmo bosque... e tomem ternamente esse objeto que nós fizemos... Somente então seremos verdadeiramente poetas... Nesse objeto viverá a poesia..."
É isto!

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