CRÔNICA DA SEMANA
A MOÇA
(Viegas Fernandes da Costa)
Podia notar nos rostos daqueles que compartilhavam comigo a angústia de aguardar o ônibus, a ansiedade de verem-na novamente. Não é fácil encarar os primeiros sorrisos irônicos de um escaldante dia de verão, principalmente aqui em Blumenau. Sua presença serve então como um alento, um estímulo moreno e perfumado para que possam iniciar a rotina de sempre com um suspiro estampado no rosto. Ao verem-na, o dia se vestia de eloqüência. Mas como demorava!
Parecia fazer de propósito, tanta demora! E quando chegava, passo calmo e altivo, o corpo trescalando luxúria selvagem, inebriava até as pedras. Perseguia-a um séqüito de olhares arrebatados, de uma cobiça incontida. A angústia transformada em enlevo, e o enlevo em sofrimento, já que sabiam poder apalpá-la apenas com os olhos; quanto às mãos, ah... estas se frustravam guardadas nos bolsos a fim de evitar a tentação de tatearem a epiderme alheia. E que epiderme! Só não vou dizer que é tenra como um pêssego pois sou moço respeitoso e comprometido e, portanto, não cometi a desfaçatez de conspurcá-la com o toque vil dos meus dedos. Mas sempre há um descarado de prontidão que ousou aproximar-se e que atesta o quão macia é sua pele, tanto que considera um sacrilégio chamar tão fina seda de pele, palavra tão vulgar. Ai, ai...
Chegava como brisa fresca, arrepiando até as sobrancelhas, no viço carnal da sua juventude. E posso jurar que até as mulheres suspiravam ante sua presença, o íntimo entregue aos desejos. Respeitáveis senhoras, hieráticas, aureoladas, agrilhoadas à luzentes alianças, não podiam conter os sinais da volúpia no compasso do peito e no enrubescer de suas faces. Que coisas profanas não se passavam em suas mentes, que desejos enrustidos não afloravam naquele enrubescer inevitável e vergonhosamente descarado?
Sua beleza é natural, coisa tão rara nos tempos que correm. Não existe um miligrama de silicone em seus seios, sequer o menor indício do toque do bisturi em seu rosto, nada de bronzeamento artificial ou dieta à base de não sei o quê “life” que vendem na televisão. Como sei? Quem me garantiu foi o Zé! Agora, não me pergunte como sabe ele das intimidades da moça, isso lá é coisa dele, e não sou de ficar me metendo nos “particulares” dos outros. A questão é que ele confirma, e em se tratando do sexo oposto, há de se dar crédito ao Zé, afinal, tem fama o homem – fama e testemunhas! Mas voltando à ninfa, penso que é justamente essa beleza natural, de medidas e formas não regulamentadas pela ABNT, que mais contribui para o embasbacamento generalizado que todas as manhãs toma conta do ponto de ônibus. E os motoristas – tão compreensivos! – até já sabem que de nada adianta parar enquanto ela estiver ali, afinal, quem ousa arredar o pé? Só vão embora depois que ela toma o seu caminho, e não faltam aqueles que esquecem para onde iam e embarcam junto com a moça.
Ao chegar, jamais se sentava, para o gáudio daqueles que aguardavam a condução pública. Permanecia parada diante de todos, às vezes movendo os braços e ajeitando com as mãos os cabelos, arredios ao toque do vento matutino. E quantos não desejavam ser aquele vento que com tanto atrevimento lhe desmanchava o penteado!? Da mesma forma havia aqueles que sonhavam em ocupar o lugar dos insóbrios vestidos que mal e mal lhe ocultavam a nudez. E se não desejavam ser outras peças do seu vestuário, não era por pudor à moça não, mas apenas porque outras peças de vestuário não trajava (certamente não desejava ficar com aquelas marcas horríveis de elástico apertado). E vê-la ali, em pé, braços cruzados sobre o ventre, joelhos desnudos ligeiramente flexionados, provocava tamanha emoção, que ouso jurar ter visto uma e outra lágrima resvalando pelos sulcos das faces de alguns dos companheiros de ponto.
Enfim, o fato é que ontem ela não apareceu, e não houve meios de aplacar a tristeza destes que já se acostumaram a embebedar-se todas as manhãs com a sua presença. Ontem ela não apareceu, e para muitos sua ausência tornou o dia frio, cinzento, apesar de todo sol e calor que fez. E agora tudo o que vejo é a apreensão, o medo de todos de que sua ausência seja definitiva. Praguejam, inquietam-se, não devia tê-los acostumado tão mal, tê-los colocado em tal dependência. Afinal, há mais de ano cumpria-se aquele ritual, de segunda a sexta, todos os dias. Mas santo de brasileiro é forte, e quando ela surge lá na curva, ainda distante, com seu passo calmo e altivo, o corpo trescalando luxúria selvagem, o praguejar se transforma em mel, a inquietação em elevo e o dia volta a se vestir de eloqüência.
Quando se for, já vi o filme, os que ficam conferem as horas no relógio, recolhem a saliva da lapela e vão trabalhar, pois é tudo o que resta, trabalhar e esperar o próximo dia.
Mas... quem sabe amanhã alguém não se decida a quebrar a rotina e tocá-la tal qual o vento? Tomara, pois é isto que ela mais deseja, todas as manhãs: um toque de carinho, um sussurro no ouvido e uma promessa de amor, só isso!
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
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