terça-feira, 2 de junho de 2009

CRÔNICA DA SEMANA


O AMANHÃ PODE NEM EXISTIR...
(Aíla Sampaio)

Desde criança, eu gostava de coisas boas. Morava no interior do Ceará e meu pai, que criava gado para vender ao FRIFOR, viajava constantemente para a capital e, quando voltava, trazia pacotes de presentes... os mais preciosos eram os de calcinhas “bunda-rica”, acho que nem mais existem hoje. As pessoas da minha época lembrarão que era uma calcinha cheia de babadinhos na parte de trás, em um material delicado, acho que jérssei... eu erguia a peça para a luz e olhava através da malha para identificar se eram ou não da marca Valisére... se não fosse, eu não usava. Os meus cabelos longos eram divididos em duas “Maria-Chiquinhas” amarradas com laços de seda que deveriam ser da mesma cor da calcinha e da meia. Papai ria das minhas manias e repetia: “que menina mais vaidosa!!!”. A mamãe ficava enfurecida. Achava-me exigente demais. Era um vestido para cada dia, todos de cambraia ou organdi, sem uma repetição durante a semana. Lembro muitas vezes que saíamos para o Brejo-Santo, cidade vizinha, para comprarmos roupas na boutique da Pitoquinha. A mamãe não aprovava, porque havia muitas costureiras que poderiam fazer roupas com o preço bem menor lá mesmo em Abaiara. Mas o papai fazia tudo para me agradar. Mesmo assim, eu era uma criança antipática, arredia, não gostava de muito chamego, não suportava pessoas negras dentro de casa... e meu pai era político, gostava de casa cheia. Recebia qualquer pessoa com o mesmo olhar sereno e me apresentava com orgulho: “essa é a Ailinha, minha bonequinha”. Muitas vezes eu saia correndo, com raiva e me isolava. Eu sabia que deixava o papai triste com aquele comportamento, mas agia sempre do mesmo modo. Nunca pedia desculpa... não sabia expressar meus sentimentos, achava que isso me fragilizaria. Era orgulhosa demais, gostava de ser paparicada, que me implorassem as coisas.
À tardinha, eu ficava sempre na minha cadeirinha de balanço, na calçada, a pretexto de olhar a rua, mas ficava mesmo era esperando que ele voltasse da Fazenda. Um dia anoiteceu sem que ele voltasse. Eu já estava impaciente, peguei a biclicleta do meu irmão e sai tentando pedalar, caindo, me arranhando, quando vi um carro estranho parado à porta da nossa casa. Corri para saber a novidade, o coração apertado sem eu saber por quê... Vi minha mãe na sala, com sua barriga de sete meses – carregando a irmãzinha que eu tanto pedia – perguntando como acontecera o acidente. O seu primo dizia onde ocorrera e que devíamos ir vê-lo. Mamãe estava calma, acreditando, mas eu, atônita, gritei: “meu pai morreu, eu sei, eu sinto” e fiquei com aquela dor seca sem conseguir chorar. Naquele momento eu tive a certeza de que havia perdido a pessoa que mais me amou na vida. Todos negaram o fato, afinal precisavam poupar a mamãe. Só no dia seguinte vi seu corpo e despedi-me para sempre. Eu tinha 6 anos e 6 meses...
Hoje, 37 anos depois, guardo seu sorriso limpo, seu olhar de sonho e seu amor. Mesmo com minha mãe e meus irmãos, senti que estava irremediavelmente sozinha. Nunca mais ganhei vestidos de organdi nem calcinhas Valisére... Mas não foi isso o que me fez mais falta na vida, não foi. Carreguei para sempre sua voz me pedindo cafuné e eu correndo pra me esconder, fugindo dos seus abraços, fazendo-me antipática para os seus amigos. A vida foi cruel... não me deu tempo para dizê-lo o quanto ele era importante para mim, o quanto eu o amava, o quanto me orgulhava de sua integridade. Hoje, 14 de fevereiro de 2009, se estivesse vivo, ele faria 75 anos. Vi-me de repente chorando, me sentindo só como quando era criança e ele demorava a voltar. Cresci e ele não viu. Transformei-me numa pessoa mais humana, mais sincera e ele não viu. Hoje, digo que amo quem amo, não perco tempo... abro a minha alma, me desnudo, tentando matar o orgulho e a vaidade, sem medo das consequências de expor o coração, afinal, o amanhã pode nem existir...

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