quinta-feira, 21 de outubro de 2010

CRÔNICA DA SEMANA

AS BAILARINAS
(Carla Dias)

Sonhei com bailarinas — delicadamente despenteadas — a sapatear sobre poças. Seus olhares eram brilhantes como o sol que despontava de fundo, clareando um cenário de saltos e rodopios. Não havia música... Ouvia-se somente a respiração compassada das bailarinas, como fossem palavras arrancadas de seus segredos.
Eu estava sentada numa cadeira, defronte ao espetáculo, as pernas cruzadas e a paciência ao meu lado, apontando os melhores momentos das meninas que tanto diziam sem mexer seus lábios; que faziam seu show de dança ainda que na falta de música.
A paciência, que em meu sonho era uma senhora muito educada e sábia, sorria o tempo todo. Eu não... Os lábios contraídos, a feição remexida pela preocupação, os dedos tamborilando sobre os braços da cadeira.
Ela me explicava que aquelas bailarinas eram de uma coleção de porcelana de uma mulher que viveu há muito tempo e que, depois de deixar seu corpo físico, resolveu morar nas suas pequenas companheiras. Então, apesar de tantas bailarinas a fiarem o espetáculo, era somente o espírito dessa mulher que lhes dava vida, como se ela tivesse se fragmentado e agora fizesse parte de um quebra-cabeça formado por mocinhas assustadas, silentes, os cabelos delicadamente despenteados.
As bailarinas continuavam sua coreografia e a Dona Paciência me fitava com... Uma paciência daquelas. E então as meninas de porcelana pararam e permaneceram estáticas, olhares injetados. De acordo com minha companheira de sonho, era nesse momento em que o espírito da mulher que habita as bailarinas as deixava descansar, cuidar dos pés fragilizados.
Acontece que as bailarinas interromperam o espetáculo justamente quando eu começava a decifrar os seus diálogos. Quando a curiosidade e a sofreguidão, por não saber o que e quando, seriam sanadas. Levantei-me da cadeira e murmurei desapontamentos. Cerquei as bailarinas com meus próprios rodopios, lamentando a ausência de vida nelas. Acusando-as de não serem capazes de terminar o que começaram. E o sorriso alentador da Dona Paciência me tirava do sério.
Eu ainda expurgava descontentamentos quando elas retomaram seus passos. Os braços jogados ao ar, a coreografia desalinhada como seus cabelos. Não consegui sair do cerco das bailarinas, e a única forma que encontrei de sobreviver a tal episódio foi me juntar a elas.
Eu escutava somente o som dos pés sobre o assoalho, o ritmo marcado pelos saltos. Sutilmente, passei a assimilar esses sons a uma melodia que vinha não sei de onde. Também passei a ouvir tambores... Que na verdade eram os nossos corações batendo num mesmo compasso.
À nossa frente, a Dona Paciência sorria uma amabilidade que pouco se vê por aí. Eu não conseguia tirar os olhos dela, daquela senhora com faces coradas, como se tivesse acabado de cometer uma traquinagem. E, aos poucos, passei a ter por ela o afeto de quem descobre que é preciso muita serenidade para não cometer a injustiça de definir a realidade somente a partir das nossas próprias conclusões.
Aos poucos, foi ficando mais fácil acompanhar as bailarinas. Minhas faces não se tornaram alvas e frias como as delas, tampouco meus cabelos se desalinharam de forma tão ingênua e bela. Entre elas, eu era uma diferença necessária, uma variação que completava a canção secreta e que emocionava profundamente aquela senhora sentada defronte a nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário