quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

CRÔNICA DA SEMANA


HABEAS CORPUS DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS
(por Wálter Fanganiello Maierovitch)

Túnel do tempo, anos 50-60. Toda a quarta-feira de Cinzas, bem cedo, um ilustríssimo brasileiro anotava na delegacia e anexa carceragem do Pátio do Colégio (centro de S. Paulo) os nomes dos contraventores detidos.
A maioria estava enquadrada por ilícitos de vadiagem, bebedeira e por causar escândalo público.
Para a elite conservadora paulistana esses excessos carnavalescos, “da ralé”, eram graves, deviam passar de contravenção a crime e só a cadeia resolvia.
Na manhã de Cinzas, quando o Palácio da Justiça abria as portas ao público, o ilustríssimo brasileiro lá estava. Portava na maleta de mão pedidos de habeas corpus, prontos para despachar com os juizes criminais.
O ilustríssimo brasileiro não cobrava nada pelos serviços. Seu móvel era o inconformismo cívico. Apenas não suportava, na condição de grande jurista, músico, professor, homem de cultura enciclopédica e fina ironia, com as ilegalidades e os abusos perpetrados contra um comum do povo.
Uma magistratura austera, com juízes de terno cinza, camisa social branca e gravata escura, recebia, conforme contado pelos da época, o ilustre professor brasileiro, mestre em direito processual penal e direito penal, que, em razão da urgência no uso de um remédio heróico (habeas corpus), apresentava-se fantasiado de Pierrô.
Naquele momento, era o Pierrô apaixonado pela causa da liberdade, em face de cidadãos ilegal e abusivamente detidos.
Parêntese: nenhum desrespeito à Justiça, apenas falta de tempo para tirar a fantasia. Para os que foram seus alunos - como o autor deste blog, abaixo-assinado -, o professor ensinou que o hábeas corpus é sempre urgentíssimo, pois ninguém deve ser preso ilegal ou abusivamente.
Pois bem: mal o ilustríssimo brasileiro deixava o Palácio da Justiça, aplausos e urros eram ouvidos da carceragem. Também de um pátio cheio de familiares, amigos e amantes em busca de notícia de foliões desaparecidos.
O professor, sempre sem esboçar sorriso a colocar em dúvida a correção da sua missão constitucional de cidadão, transportava para o Pátio do Colégio ordens de habeas corpus liberatórios ou pedidos de informações, que muitos delegados já tinham prontas as respostas, ou seja, a de certo paciente não estar preso, ou seja, era solto com a chegada do pedido judicial de informações.
Quando das liberações, o ilustríssimo brasileiro já tinha desaparecido. Dizem que ia tomar um café na praça de Sé e, nas escadarias, olhava espantado o tamanho da fila de pecadores que iam receber as cinzas dos padres de plantão.
Ele também percebia a indignação e um certo mal-estar dos clérigos e dos pecadores, pois, os libertados no pátio do Colégio, muitos com restos de fantasia, passavam pela praça a contar as marchinhas carnavalescas que foram contidas pelas grades. Alguns, já embicavam em algum bar.
A cerimônia de cinzas prosseguia. E o ilustríssimo brasileiro, professor Canuto Mendes de Almeida, catedrático da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, compositor e depois Procurador Geral da República no governo Jânio Quadros, saia de cena. Isto com a alma lavada, sem precisar receber cinzas.

(in www.maierovitch.blog.terra.com.br)

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