CRÔNICA DA SEMANA
MADRUGADA
(Rubem Braga)
Todos tinham-se
ido, e eu dormi. Mesmo no sonho me picava, como um inseto venenoso, a presença
daquela mulher. Via os seus joelhos dobrados; sentada sobre as pernas, na
poltrona, descalça, ela ria e falava alguma coisa que não podia perceber, mas
era a meu respeito. Eu queria me aproximar; ela e a poltrona recuavam, passavam
sob outras luzes que brilhavam em seus cabelos e em seus olhos.
E havia muitas
vozes, de homens e de outras mulheres, ruído de copos, música. Mas isso tudo
era vago: eu fixava a jovem mulher da poltrona, atento ao jogo de sombra e luz
em sua testa, em sua garganta, nos braços: seus lábios moviam-se, eu via os
dentes brancos, ela falava alegremente. Talvez fosse alguma coisa dolorosa para
mim, eu percebia trechos de frases, mas ela estava tão linda assim, sentada
sobre as pernas, os joelhos dobrados parecendo maiores sob o vestido leve, que
o prazer de sua visão me bastava; uma luz vermelha corou seu ombro esquerdo,
desceu pelo braço com uma carícia, depois chegou até o joelho. Eu tinha a idéia
de que ela zombava de mim, mas ao mesmo tempo isso não me doía; sua imagem tão
viva era toda minha, de meus dois olhos, e isso ela não me negava, antes
parecia ter prazer em ser vista, como se meu olhar lhe desse mais vida e beleza,
uma secreta palpitação.
Mas agora todos
tinham sumido. Ergui-me, fui até a varanda, já era madrugadinha. Sobre o
nascente, onde a barra do dia ainda era uma vaga esperança de luz, havia nuvens
leves, espalhadas em várias direções, como se durante a noite o vento tivesse
dançado no ar. Depois, aos poucos, foi se acendendo um carmesim, e sob ele o
mar se fez quase verde. Eu ouvia a pulsação de um motor; um pequeno barco preto
passava para oeste, como se quisesse procurar as sombras e precisasse pescar na
penumbra. Imaginei a faina de homens lá dentro, tomando café quente na caneca,
arrumando suas redes, as mãos calosas puxando cabos grossos, molhados, frios,
as caras recebendo o vento da madrugada no mar, aquele motor pulando como fiel
coração. Duas aves de asas finas vieram de longe, das ilhas, passaram sobre meu
telhado, em direção às montanhas. De longe vinha um chilrear de pássaros
despertando.
Dentro de casa,
no silêncio, parecia ainda haver um vago eco das vozes que tinham falado na
noite: os móveis e as coisas ainda respiravam a presença de corpos e mãos. E a
poltrona abria os braços esperando recolher outra vez o corpo da mulher jovem.
Apaguei as luzes, fiquei olhando o mar que a luz nascente fazia túmido. Uma
brisa fresca me beijou. E havia um sossego, uma tristeza, um perdão, uma
paciência e uma tímida esperança.
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