sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

CRÔNICA DA SEMANA

O TEMPO
(Tânia Melo)

A ampulheta deixava Maristene extasiada. Sua mãe chamava para o café, para o almoço, para as lições da escola e até para um sorvete daqueles que ela adorava, mas a menina só levantava quando toda a areia houvesse caído para o outro lado.
Ninguém entendia aquela mania. Mas, para ela era como um ritual. Uma reza, ou algo assim. Estranho comportamento para uma criança de apenas oito anos. E, olha, que já fazia quase um ano que Maristene repetia o ato. Que está fazendo? Anda logo. Deste jeito vai perder a hora da escola, reclamava a mãe.
Quando perguntavam o que era aquele objeto, ela sorria e não falava nada. Ah, deixa pra lá, isso é coisa de criança, dizia a tia. Afinal, ela não tem irmãos. Arrumou uma distração. É, mas isso já está passando dos limites. É sempre. Só quando está dormindo é que a dita cuja fica ali, parada, no criado mudo. Acordou, abriu os olhos, é a primeira coisa que pega e não larga mais, o dia inteiro.
Até nas férias, quando foi para a casa da avó, levou a ampulheta e ficava lá, esperando a areia cair, para depois atender a qualquer chamado. O pior de tudo é que veio de lá muito triste e só chorava. Mas o que aconteceu? Ninguém ficou sabendo. A avó garantiu que por lá correu tudo igualzinho, normal, sem nenhum problema. Esta menina é muito estranha.
A tia, muito amiga de Maristene, resolveu conversar com ela. Com todo o jeitinho entrou no seu quarto enquanto a menina lia um livro e olhava a ampulheta.Os olhos lá e cá. Minha filhinha, deste jeito você consegue entender a história que está lendo? Fica virando e revirando este vidrinho aí, cheio de areia. Não é vidrinho, tia. É o tempo. Ele está preso aqui dentro e eu não posso deixar que escape. Todo mundo fala que o tempo voa, que a vida passa depressa demais. Então, eu cuido muito para que ele fique sempre aqui, de um lado para outro, a fim de não fugir e levar as pessoas que eu amo pra longe de mim. Lá na vovó, fomos a um passeio e eu esqueci o tempo em casa. Que agonia! Meu peito parecia que ia explodir. Quando foi ali pelo meio da tarde, na volta, o carro quase saiu da estrada. A vovó passou mal de tão nervosa. O médico teve que atendê-la. Corri para o quarto e sacudi varias vezes o tempo, enquanto falava com ele, pedindo para que não fizesse isto comigo. Não levasse minha avó para longe de mim. Não sei se consegui alguma coisa, sabe, tia? Desde aquele dia, ela ficou diferente, parecendo tão cansada. Por isso eu vim embora tão triste. Agora, então, não descuido mais, de jeito nenhum.
Minha querida. Não é assim que as coisas acontecem. Esta areia aí dentro é para marcar o tempo. Ela leva um minuto para descer todinha. Quando você vira, lá se vai mais um minuto. O tempo não pára. Veja no relógio. Mesmo que você não vire o vidrinho, os minutos vão seguindo adiante, formando as horas, passando os dias, os meses e os anos. É igual para todo mundo.
Maristene virou de costas para a tia e não deu mais uma palavra. Seguiu na leitura e na virada da ampulheta. Como pode uma pessoa grande como a tia Vera, que sabe das coisas, dizer uma bobagem destas? Imagina! Se eu largar o tempo ele vai correr, correr e, logo, logo, vou ficar sozinha. A vovó irá embora. Mamãe e papai, também. Até mesmo a tia. Não vê que estou cuidando pra ela também ficar aqui, perto de nós?
Os dias foram passando, assim como os meses e já era, de novo, Natal. Maristene tinha o seu pedido de presente prontinho. Saiu correndo rumo ao portão para entregar sua carta ao carteiro. Ele se encarregaria de levá-la ao Papai-Noel, com certeza. Como esperou a areia passar todinha para o outro lado e só então sair à rua, o homem já estava bem longe, na calçada oposta. Na pressa, não olhou com cuidado, e atravessou. Uma freada brusca e um grito. Depois, foi só silêncio. A mãe e a vizinhança acudiram, desesperadas. Maristene estava caída no asfalto. O motorista não teve como evitar o acidente pois a menina surgiu de repente. Nada mais foi possível fazer. Quando a colocaram na ambulância, tinha numa das mãos a pequena ampulheta, em cacos. A areia já se perdera quase toda. O tempo fugiu das mãozinhas da menina que tanto cuidara para que isso não acontecesse. Na outra mão, a carta para o Papai-Noel. Pedia uma ampulheta bem grande, que demorasse muito mais para que a areia passasse por completo de um lado para outro. Ela tivera essa idéia imaginando que, assim, teria muito mais tempo e as pessoas que amava jamais iriam embora.

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